Não faz tanto tempo assim. Certamente o leitor lembrará que, em 1968, milhares de estudantes e trabalhadores tomaram as ruas da França protagonizando um dos movimentos políticos de maior repercussão na história recente. Estava em evidência a luta pelos direitos civis. A famosa greve geral, do dia 13 de maio daquele ano, levou mais de um milhão de pessoas a organizarem-se, na base dos sindicatos e nos centros acadêmicos das universidades, para exigir mudanças radicais nas políticas conservadoras adotadas, à época, pelo general Charles de Gaulle. Hoje, as revoltas no mundo árabe e a crise econômica na Europa apontam na direção de uma mudança significativa, pelo menos a nível operacional, na forma de organizar a luta política.
Esse processo é acompanhado de perto pelos meios de comunicação, que têm papel fundamental na formatação da imagem dos personagens envolvidos no conflito e no próprio entendimento destes acontecimentos históricos por parte do público. A cobertura da chamada “grande mídia” não apenas molda o caráter das agitações populares (proliferando os chamados “eventos midiáticos”), como, também, dá-lhes novo relevo. Na década de 1960, a contracultura, representada no âmbito midiático pelo lema “sexo, drogas e rock’n roll”, repercutiu fortemente no Brasil e inspirou, por exemplo, a chamada Tropicália. O grupo de artistas que compunha esse movimento rapidamente foi absorvido pela indústria cultural e suas reivindicações – sintetizadas no princípio da igualdade entre os sexos – ficaram restritas à confrontação artístico-cultural.
Relativização do acontecimento
Embora a origem das exigências populares, na França, tenha sido determinada por questões de interesse coletivo – inclusive, motivando discussões sobre discriminação racial nos Estados Unidos e, paralelo a isso, o surgimento do movimento hippie – é importante destacar que os meios de comunicação, naquele dado momento, procuraram evidenciar certos aspectos em detrimento de outros, seguindo sua regra de ocultação e acentuação. É evidente a relevância das manifestações artísticas e a reflexão que, por vezes, permitem evocar. São experiências fundamentais para a construção de uma sociedade mais justa e fraterna. No entanto, a ação política não pode ser suplantada e, tal feito ocorre, repetidamente, na história da publicização dos fatos. Com a atual cobertura dos conflitos internacionais é possível evidenciar, mais uma vez, esse processo. Desloca-se o núcleo de interesse das matérias para o âmbito tecnológico, deixando em segundo plano a importância da ação direta, ou seja, o embate político.
Os neo-revolucionários, formatados pela mídia hegemônica, são descritos como jovens de classe média, bem-educados e com amplo domínio de sites de relacionamento e disseminação de conteúdos, como Twitter e Facebook. Aliás, foi através destes mecanismos que, recentemente, púberes espanhóis, organizados por meio do movimento “Democracia Real Já”, conclamaram seus pares a amplificarem a luta contra as medidas tomadas pelo governo do socialista José Luis Rodríguez Zapatero. Embora, na Espanha (para não dizer globalmente), o neoliberalismo dê mostras de sua falência, com os cortes realizados na área social atingindo desde os trabalhadores mais jovens até os aposentados, os meios de comunicação preferem relativizar o acontecimento.
Defesa do livre mercado
Constantemente, os principais noticiários da mídia eletrônica – também brasileira – destacam o papel quase imprescindível desempenhado pelas redes sociais na organização da luta promovida pelos insurretos. Nada se fala da efetiva motivação de tais movimentos, o progressivo abandono da política do welfare State e a consequente adesão catastrófica ao modelo do Estado mínimo, própria do neoliberalismo. Para tentar contornar o déficit orçamentário, privilegiam-se banqueiros e cortam-se os benefícios da maior parte da população, mas o foco central da midiatização dos fatos recai sobre o perfil dos ativistas cibernéticos e suas ferramentas de luta.
No Egito, por ocasião dos protestos contra o governo de Muhammad Hosni Said Mubarak, o acesso móvel ao Twitter foi bloqueado. A medida foi adotada logo após o governo tomar conhecimento de que os protestos estavam sendo transmitidos para todo o mundo via internet. Essa ação serve como um bom álibi para se defender a liberdade do uso tecnológico e, progressivamente, chegar à defesa do livre mercado, pois, para a mídia dominante, quem quiser se sublevar, no atual contexto das mídias digitais, precisa fazer uso de tais instrumentos. Contudo, a legítima condenação da censura não pode ser confundida com defesa de mercado desregulamentado, sem proteção social.
Barricadas virtuais
Não se trata de desconsiderar as potencialidades da internet, especialmente porque se reconhece sua importância, com destaque para quando o uso das redes é direcionado para contribuir na organização dos movimentos sociais. Acontece que este determinismo tecnológico, resultante do fetichismo digital contemporâneo, acaba colaborando para minar antigas formas de organização popular, responsáveis por importantes mudanças no comportamento da sociedade mundial, a exemplo do que ocorreu em 1968.
A glorificação do uso das redes corrobora para a construção de um novo perfil revolucionário, o qual, antes de tudo, precisa estar apto a consumir tecnologia. É como se não fosse mais possível conformar a luta política pelos meios convencionais. Assembleias, atividades de formação, panfletagens, colagens e seus congêneres são, pouco a pouco, convertidos em práticas antiquadas. Com isso, promove-se o enfraquecimento do esforço da militância, amputa-se o verdadeiro sentido das manifestações populares e incentiva-se a construção de meras barricadas virtuais. Para a identificação do que está por trás disso tudo, basta considerar-se a eficácia deste modelo para o custeio da democracia liberal e o apoio do governo norte-americano para a sua devida concretização.
Originalmente publicado em: Observatório da Imprensa
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