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sábado, 20 de agosto de 2011

Perder para se achar

Levantou um pouco mais tarde do que de costume. Acordou com a sensação de que havia perdido alguma coisa. Na noite anterior, mesmo sem lembrar detalhes, foi acometido por algo muito grave. Mas já estava atrasado e não havia tempo para procurar pelo objeto de sua aflição. Na certa, ao fazer o caminho de sempre rumo ao trabalho, lembraria o que estava procurando.

Dirigindo-se até o carro sentiu uma vontade súbita de ir para o serviço utilizando outra condução. Não chegaria mais no horário mesmo e, aquela altura, o trânsito já deveria estar um caos. Fazia sempre o mesmo trajeto. Quando saltou do ônibus, se encontrava próximo à estação de trem. De repente, avistou um grupo de índios sentados na calçada. Eles estavam do outro lado da rua. Tocavam flautas e vendiam artesanato. Sentiu uma imensa vontade de aproximar-se. Foi o que fez. Caminhou até lá e, ao dar as costas à estação, ouviu o barulho dos vagões passando sobre os trilhos.

Estava realmente encrencado. Já passavam duas horas do horário previsto para chegar ao trabalho. Mesmo assim só conseguia pensar na beleza do som que lhe invadia o ser. Chegou perto de um dos nativos e perguntou há quanto tempo estavam ali. A resposta lhe surpreendeu:

- Estivemos sempre aqui. Mesmo antes desta selva de pedras se erguer ao nosso redor.

Achou tudo muito estranho. Nunca havia reparado no ambiente que o cercava ao passar por aquele local. Menos ainda na música, nos sorrisos e nos olhares solidários perdidos em meio à correria do dia a dia. Percebeu que se aproximava da meia hora da tarde e resolveu seguir viagem. Prometeu aos índios voltar para ouvi-los novamente. Entrou no túnel rumo à estação de trem e se deparou com um velho senhor sentado próximo as escadas. O pedinte esticava o braço em busca de esmolas, mas as pessoas pareciam não vê-lo. Sentiu-se indignado ao deduzir que elas estariam acostumadas com a presença do pobre ancião e, portanto, não se sentiam instigadas a prestar solidariedade. Sentou-se ao lado daquele homem castigado pelo tempo e ouviu a frase dita exaustivamente:

- O senhor pode me ajudar? Qualquer coisa serve.

Enfiou as mãos no bolso e percebeu que estava com pouco dinheiro. Na verdade, tinha apenas R$ 3,00 reais, sendo R$ 1,00 real em moedas. Entregou a cédula de R$ 2,00 reais ao velho pedinte, recebendo como retribuição um sorriso sincero. Ficaram conversando por um bom tempo. Descobriu que aquele homem nem sempre esteve em condição tão ingrata. Havia constituido família, trabalhado e chegou a ser dono de um pequeno estabelecimento comercial no centro da cidade. A morte das filhas e da esposa, em um acidente de trânsito, acabou o empurrando ladeira abaixo. Vieram as bebedeiras e, quando menos esperava, já havia perdido tudo.

Estava envolvido na conversa quando ouviu alguém dizer que já passava da uma hora da tarde. Apalpou os bolsos da calça e percebeu ter esquecido o celular. Ficou inquieto. Sabia que, desde ontem à noite, havia perdido alguma coisa, mas não conseguia lembrar o que era. Agradeceu ao novo amigo pela conversa e seguiu em direção ao trabalho. Estranhou sua própria tranqüilidade, pois, ao contrário das outras vezes - quando se atrasava menos de quinze minutos - não se sentia desconfortável. Ao embarcar no trem recostou-se ao assento e observou à sua volta. Nunca havia feito isso. Viu pessoas como ele. Elas, ao contrário, pareciam ver nele uma pessoa diferente.

Por isso, apenas sorriu e acenou com a cabeça, de forma cordial. Alguns riram, outros não ousaram encará-lo, muitos dormiam e nem perceberam sua presença, e, a maioria, parecia acostumada com pessoas de todo tipo. Ao parar na segunda estação, um menino, de no máximo 12 anos, entrou no trem e começou a discursar:

- Olá senhoras e senhores, me chamo Júlio, estou aqui pedindo a colaboração de vocês porque estou desempregado e minha família está passando fome. Qualquer ajuda é bem-vinda.

A maioria nem percebeu a presença do garoto. Muitos pareciam acostumados com este tipo de situação e deram de ombros. Vasculhou nos bolsos. Ainda tinha R$ 1,00 (em moedas). Resolveu entregar ao menino. Não ficou refletindo sobre o uso do dinheiro. Apenas reconheceu que, em sua posse, tampouco seria mais útil. Novamente a retribuição foi um sorriso, dessa vez, no entanto, acompanhado de um “muito obrigado”.

Desceu na estação mais próxima ao serviço, já passava das duas da tarde. Lembrou que seus colegas de trabalho deveriam estar voltando do almoço. Não sentiu fome. Percebeu a presença de uma moça na estação onde descera. Ela usava roupas curtas e insinuava-se para todos os homens que passavam. Quando cruzou com ela, apenas sorriu. Foi convidado para ir até a praça do outro lado da rua e dar uma “rapidinha”.

Continuou sorrindo, mas, em uma fração de segundos, passou a encará-la com olhar fraternal. Recebeu uma cara de espanto como resposta. Ela virou-lhe as costas, mas ele insistiu que gostaria de conversar. A moça cedeu aos seus apelos. Durante o bate papo descobriu que ela tinha dois filhos e morava embaixo da marquise de um prédio não muito longe. A prostituição, para ela, ao contrário de muitas de suas amigas, não era bem uma opção. Sentiu-se constrangido por estar em uma situação muito mais confortável. Tinha casa, saúde, emprego, enquanto sua interlocutora, de no máximo 15 anos, já era mãe de dois filhos e esperava um terceiro.

Ficou sabendo que ela não tinha o que comer desde ontem à noite. Nesse momento, recordou, “havia perdido algo” no dia anterior. Num lapso de instante a menina levantou-se e disse que precisava ir andando. Ela chorou bastante enquanto conversavam, mas já se aproximava das cinco horas da tarde e precisava dar de mamar ao filho menor. Só então ele recordou que estava indo em direção ao trabalho. O local onde desempenhava sua rotina laboral era próximo da estação. Rumou até lá e, no caminho, viu crianças brincando, acariciou um cachorro que passava, parou por uns instantes na frente de uma bela estátua, não sabia bem qual era o nome do santo, mas, pouco importava, admirou a beleza da encantadora escultura. Dizem que chegou até a falar com ela.

Quando chegou ao prédio da empresa cumprimentou o porteiro. Este último correu em sua direção. Meio sem fôlego e com um aspecto sério lhe disse:

- O que aconteceu? Desde ontem ninguém consegue falar com você. Seu chefe está uma fera. Por que não voltas para casa? Amanhã diga que estava doente e apresente um atestado. Caso contrário, na certa, serás demitido.

Agradeceu, é claro, a preocupação do amigo, mas resolveu subir até a sala apertada que dividia com mais três colegas. Enquanto subia a escada passou por cada um deles e todos tentaram impedir o encontro com o chefe. Agradeceu, novamente, mas seguiu seu rumo. Quando ficou frente a frente com o homem furioso que estava a sua espera, percebeu semelhanças entre os dois. O homem esbravejando em seus ouvidos era igual a ele, igual a todos os outros encontrados pelo caminho, embora, no serviço, fosse reconhecido como uma entidade “superior”. Não ouviu uma só palavra das ofensas proferidas em tom de indignação, apenas sorriu e disse:

- Lembrei!

- Lembrou? Como assim? Lembrou o quê? Você está demitido – retrucou o chefe zangado.

- Tentei ligar para você o dia todo. Não deu justificativa nenhuma de sua ausência e não atendeu as chamadas no celular – continuou a esbravejar o patrão em sua cólera diante do funcionário.

-Não tem problema. Eu lembrei - disse ele ao abraçar seu carrasco.

-Me solte e saia já daqui! Você está demitido! Entendeu? Demitido! Parece ter perdido a sanidade. Que horror – vociferou novamente o seu “superior”.

-Sim. Foi isso mesmo. Ontem à noite eu perdi a sanidade e hoje a única coisa que ainda me atormentava era não saber o que tinha perdido. Agora já sei e posso seguir meu caminho.

- É. Siga sim. O seu caminho é o caminho da rua - retrucou o outro cheio de ódio.

-Claro, por isso estou tão feliz. Eu já não suportava mais ficar aqui dentro. Nem lembrava como é a vida fora desta sala. Precisava sair. Vou embora com a consciência tranqüila, pois estava prestes a enlouquecer!

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*Alguns dos poemas, contos e crônicas que escrevi no passado e outros mais recentes, como este, podem ser encontrados no site Recanto das Letras. Caso tenha interesse em continuar a leitura, clique neste link.

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