Já dizia o poeta, “para falar em amor, é preciso estar sofrendo”. Veja bem, não me refiro apenas àquele amor não correspondido pelo ser amado, pois, hoje em dia, este sentimento parece capaz de se manifestar nas mais variadas expressões da vida material. O que é uma lástima. É o amor ao supérfluo. Não é paixão verdadeira. Esta última, aliás, tem, como principal característica, elevar os sentidos ao grau sublime do desatino e, por outro lado, extinguir sonhos com a celeridade impertinente da temida realidade.
Não dá para negar, no Brasil, futebol, mulher e samba são paixões nacionais. Contudo, os objetos responsáveis por configurar as relações constitutivas destas paixões, não são, por si só, elementos capazes de provocar tais delírios. Constituem-se em meras alegorias. Ninguém ama a bola. Quando está ali, parada, no meio do campo, a bola é só um corpo esférico de borracha. Não tem a mínima graça. Ganha vida com o toque humano. É neste momento que se criam as expectativas quanto ao seu percurso, o qual, vencendo a linha demarcatória do gramado, pode, ou não, ocasionar a alegria do torcedor.
Já a mulher é bela e irresistível por natureza. Quanto menos ornamentos forem utilizados, mais visível ficam seus encantos, menos espaços existem para controlar a razão e, tanto mais, se deixa de lado o supérfluo para valorizar a agradável revelação de sua essência. Roupas, brincos e sapatos não chamam a atenção quando ficam expostos em lojas. Tornam-se apenas acessórios. Estão lá, imóveis, incapazes de provocar qualquer tipo de atração. Para despertar interesse precisam estar inseridos no contexto do corpo feminino. Fora isso, não passam de mercadorias sem vida.
Com o samba ocorre algo semelhante. É a manifestação encantadora, pura e autêntica das nossas raízes. É o consolo do que sofre e o estopim para incendiar, de uma vez por todas, a vida do contente. Violão, cavaquinho, surdo, repique, tantã, pandeiro, nada disso faz sentido sem o toque especial de quem entende do assunto. Ele expressa todo o seu sentimento na execução conjunta da harmonia musical. É a arte da batucada, sem apego ao requinte e sofisticação. O improviso, movido a paixão, transforma mesas em tambores e qualquer lugar serve de passarela.
Por tudo isso, é constrangedor verificar a mercantilização das verdadeiras paixões humanas. A imposição econômica seqüestra os sentimentos, sobretudo pelo valor de custo a eles agregado. A bola, improvisada nas zonas de várzea, custa caro nos campos de futebol. O estádio, sede do evento futebolístico, estipula o seu valor de mercado selecionando a entrada dos torcedores. Dirigentes, comissão técnica e jogadores faturam milhões nos times considerados "grandes". Valor este mensurado pelas conquistas dentro e fora de campo, graças aos recursos advindos de patrocinadores.
As mulheres procuram, cada vez mais, espaços de atuação e protagonismo social, político e econômico. Não estão focadas apenas no mercado de trabalho, mas passam a atuar, também, nas instâncias de poder. Hoje, a presidente da República é mulher. Das dez ministras do seu governo, o dobro do que existia na gestão de Lula, pelo menos duas ocupam cargos de destaque. Gleisi Hoffmann e Ideli Salvatti estão, respectivamente, na Casa Civil e no Ministério das Relações Institucionais. Neste caso, beleza e charme tornam-se alegorias. A paixão manifesta-se para além da imposição cultural. Enfim a sociedade parece estar vencendo estigmas.
Na verdade, nem tudo são flores. A reconfiguração da sociedade capitalista, em sua versão pós-moderna, possibilita que o samba de raiz perca espaço para as mais variadas versões do rentável pagode. Na maioria das rádios comerciais é a venda fácil das melodias massificadas que preenche as "paradas de sucesso". Os canais de televisão utilizam esta "nova" melodia como instrumento de mercantilização do corpo feminino. O sambista, que faz do prato e da panela instrumento, perde espaço para os adestrados "dubladores de auditório". É o jabaculê criando e recriando sucessos, com o caixa jorrando dinheiro para empresários de ocasião. Enquanto isso, a paixão deixa de ser a expressão dessa arte para virar tema de canções industrializadas. Sua substância se perde nos holofotes da encenação. Assim, embora se modifiquem os atores sociais, continua-se escanteando a diversidade. Os novos governantes parecem pouco preocupados em distribuir poder. Operam, aparentemente, na contramão da sociedade machista, sem eliminar o seu aspecto autoritário.
Há quem diga que as desigualdades diminuiram substancialmente no Brasil. Agora, a população estaria mais consciente e o voto seria reflexo deste processo. Afinal de contas, o futebol "profissionalizou-se", a mulher está ocupando "postos-chave" no governo e o carnaval atrai turistas de todo o mundo para o “país do crescimento econômico”. Infelizmente, quem sai às ruas para trabalhar, todo dia, vê pouca diferença. A mulher precisa sapatear, e muito, para continuar dando conta da dupla jornada de trabalho. O futebol já tem dia e hora, estipulados pela televisão, para entrar na vida e na casa dos brasileiros. E, para completar, está determinado: é nos domingos que todo mundo samba, "dança com famosos", ou algo parecido. Tanto o trabalho, quanto o “lazer”, passam a reprimir o verdadeiro descanso. Homens e mulheres seguem apáticos em frente ao televisor. Estão ávidos por amar, no entanto, parecem, não mais, saber como fazê-lo. Querem sair para curtir um partido alto, jogar aquela pelada com os amigos, mas não podem. Está quase na hora de começar tudo outra vez. O domingo já se foi e, amanhã, é segunda-feira!
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