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terça-feira, 11 de outubro de 2011

Estereótipo e debilidade do humor televisivo

O estereótipo permanece a matéria-prima do humor na televisão brasileira, mesmo que algumas experimentações tentem construir situações mais inteligentes e respeitosas à diversidade. Há mudanças de roupagem e reelaborações, mas o resultado final continua o mesmo: ofender para entreter. A abundância de humorísticos na TV de hoje não representa necessariamente variedade de formatos e conteúdo. Piadas homofóbicas e misóginas continuam prevalecendo e, ao serem requentadas na caçarola pós-moderna do jornalismo cômico, atingem níveis de crueldade infelizmente compatíveis com os de audiência, revelando a debilidade dos produtores da mídia privada em inovar correndo algum tipo de risco.

O caso que mais tem chamado a atenção ultimamente é o do humorístico Custe O Que Custar (CQC), veiculado toda segunda-feira pela Band, a partir de formato original da produtora argentina Eyeworks – Cuatro Cabezas, realizado em diferentes países do mundo desde a década de 90. Um dos apresentadores do programa, Rafinha Bastos, já foi, inclusive, acionado pelo Ministério Público de São Paulo (MP-SP), onde está sendo investigado por incitação ao crime de estupro. A ação foi motivada por uma declaração do humorista em seu show de comédia stand-up, onde ele teria dito que “toda mulher que” reclama por ter sido “estuprada é feia”; merecendo “um abraço”, e não cadeia, o homem que cometeu tal ato.

Rafinha é formado em jornalismo no Rio Grande do Sul e, antes de ingressar na Band, como um dos integrantes do CQC, trabalhou em outras emissoras televisivas, inclusive com passagem pela TVE gaúcha. No entanto, sua formação acadêmica e profissional não foram suficientes para impedi-lo de utilizar a mesma postura dos shows de stand-up em um canal de televisão cuja concessão é pública. Em maio deste ano, após se envolver em uma polêmica com a blogueira Lola Aronovich, o líder do CQC Marcelo Tas o defendeu publicamente, ameaçando processá-la por dirigir críticas generalizadas em repúdio à bancada do programa.

Concessão pública não é palco de circo

Neste caso, as declarações de Rafinha ocorreram durante o CQC 3.0, uma espécie de extensão do programa televisivo, transmitido via internet após o término do humorístico da Band. O apresentador debochou da prática de aleitamento materno em locais públicos, direcionando este ato para o apelo sexual em torno da imagem feminina. Na última semana de setembro, ao comentar a gravidez da cantora Wanessa Camargo, Rafinha teria declarado que “comeria até o bebê”, gerando repúdio generalizado. Cabe lembrar que apologia à pedofilia, violência contra a mulher e tantas outras incitações criminosas são passíveis de punição penal.

Contudo, a última “pérola” do jornalista metido a engraçadinho não passou impune pela cúpula da emissora da família Saad. A direção da Band decidiu tirá-lo do CQC, em meio ao debate de sempre, em que qualquer reação a iniciativas preconceituosas são tachadas de censura, como se a sociedade não tivesse o direito de reagir ao ultraje, intencionalmente confundindo ações com interesse público e outras com objetivos privados, contribuindo para a falta de esclarecimento da população. O episódio como um todo deve levar a pensar o uso que as emissoras de TV fazem da concessão pública que recebem.

Anteriormente, em agosto do mesmo ano, durante o quadro “Top Five”, que elege as cinco principais gafes da TV brasileira, Bastos havia chamado Daniele Albuquerque, esposa do dono da RedeTV!, Almicare Dallevo, de cadela, enquanto a achincalhava por não conseguir pronunciar corretamente a palavra “octógono”, durante entrevista realizada com o lutador Vitor Belfort. Rafinha chegou ao ponto de dizer que, se fosse ele, “teria dado uma cotovelada na apresentadora”. Na semana seguinte, desculpou-se em rede nacional, tendo suas escusas aceitas por Albuquerque, antes de reincidir no preconceito e no desrespeito.

Alternativa e produção popular

Não obstante, o sexismo e o preconceito são uma constante no humor da TV brasileira, como atestam Zorra Total, da Rede Globo, e A Praça é Nossa, do SBT. No caso do Zorra Total, também contribui fortemente para a naturalização de crimes como abuso sexual e homofobia. Têm destaque no programa quadros em que homossexuais são ridicularizados e mulheres sofrem abuso em vagões de um trem. A rotina do trabalhador brasileiro exige muito sacrifício e para as mulheres é ainda pior. Muitas vezes, além da dupla jornada de trabalho, elas são submetidas ao assédio sexual no caminho de ida e de volta do serviço.

Essa realidade certamente poderia ser retratada por outro viés. Não apenas separando o que é cômico do que é matéria jornalística, mas, sobretudo, denunciando a violação dos direitos humanos e procurando salientar o verdadeiro humor proveniente do mundo do trabalho. Se toda piada inevitavelmente ofendesse alguém e qualquer medida visando ao seu controle fosse uma forma de censura, conforme argumentou Rafinha em defesa própria, seria interessante satirizar também os proprietários dos meios de produção; ou ainda os jornalistas soberbos, que acreditam ser independentes e não passam de marionetes do poder econômico, considerando a quantidade de merchandising presente em programas como o CQC.

Como uma luz no fim do túnel, opondo-se à lógica das “brincadeiras de mau gosto”, uma iniciativa criada através de parceria entre a Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura (SAV/Minc) e a TV dos Trabalhadores (TVT) apresenta-se como alternativa. O projeto Qual é a Graça?, em desenvolvimento desde agosto de 2011, para veiculação até o final do ano, objetiva criar uma atração com oito episódios focando o humor presente no dia-a-dia do povo brasileiro. Para chegar à formulação do programa, um conjunto de ações está sendo desenvolvida, chamado Na batalha, reunindo diretores de teatro, cineastas, palhaços e atores independentes. São, em suma, seminários e oficinas de roteiro e atuação, os quais ocorrem também em ambiente online, através do site www.nabatalha.com.br.

Uma nova proposta de humor

Em agosto de 2010, a TVT, parceira na concepção desta experimentação audiovisual, passou a operar o canal educativo 46-UHF, na cidade paulista de Mogi das Cruzes. Atualmente, através de parcerias com canais comunitários e, sobretudo, por intermédio do endereço eletrônico www.tvt.org.br, é possível acompanhá-la em qualquer parte do país e do mundo. Das suas seis produções próprias (o restante do horário opera em rede com a TV Brasil), o noticiário Seu Jornal destaca-se pelo viés crítico e participativo. Por meio do jornalismo colaborativo, lideranças comunitárias, operários de chão de fábrica e militantes de movimentos sociais veiculam suas realizações, apresentando suas bandeiras de luta.

A emissora, intitulada “dos trabalhadores”, pertence ao Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema. A trajetória dos operários do ABC e o protagonismo na apropriação das tecnologias de áudio e vídeo são emblemáticos na história do movimento social brasileiro e remontam aos anos 80, época em que a experiência de vídeo popular fez erigir o conceito de contra-informação. Se esta proposta for levada também ao campo do humor, poderá se inverter mais do que apenas o foco da piada, pois, ao denunciar a realidade do trabalhador brasileiro sem perder a graça, pode-se fazer erigir uma nova proposta cômica, onde o humor deixa de ser agressivo e torna-se construtivo, ou ainda, propositivo.

Originalmente publicado em: Observatório da Imprensa

Um comentário:

Anderson Santos disse...

Muito bom o texto e a análise sobre o panorama dos programas "cômicos" da TV brasileira. Só algumas ressalvas em relação ao CQC, o programa em questão foi no dia 19 de setembro. Curiosamente, as primeiras manifestações contra o que ele falou ocorreram depois do programa do dia 26, que ele participou normalmente. A segunda é que, não se se você soube, mas parece que ele pediu demissão da Band. Há quem comemore, esquecendo que há portas abertas no SBT, na Record e na Rede TV! para o tipo de "humor" que ele faz.

(Ah, a Lola finalmente citou outros programas além do CQC no post de hoje).

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