Passado o réveillon, ou, como diriam os franceses, réveiller – termo utilizado para avisar a chegada de um novo ano, deixando para trás as intempéries do anterior –, ficam os famosos "balanços". Para não fugir à regra, no mesmo período as revistas de circulação mundial, como a norte-americana Time, elegem as chamadas "personalidades do ano". Na carona desta avaliação "inequívoca", grupos de comunicação de todo o mundo, afinados com a linha editorial de uma das principais publicações estadunidenses, reproduzem a novidade e contribuem para fazer emergir um discurso único sobre quem são as mais destacadas celebridades do planeta.
Prova disso é a postura adotada pelas grandes redes de televisão do Brasil, cujas ligações, em termos de compromissos, responsabilidades e interesses, são bem conhecidas, como atestam a história e, no cotidiano, os televisores espalhados por todo o país. Tão logo a Time divulgou a escolha de Mark Zuckerberg, percursor do rentável Facebook, como "personalidade do ano", os noticiários das emissoras brasileiras já trataram de multiplicar a informação. Assim, um aspecto importante do fato não foi evidenciado, já que o voto dos internautas teve outro veredicto, consagrando o criador do site WikiLeaks, Julian Assange, como o grande nome de 2010.
A escolha por Zuckerberg é fruto de um posicionamento mercadológico, condizente com a dialética da sociedade da informação. Amparados nas premissas da burguesia liberal francesa de 1789, que exaltava os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, os apologistas tecnológicos da grande mídia de hoje enxergam nas redes sociais espaços de materialidade do progresso tecnológico, esquecendo-se de citar os conflitos inerentes a esse processo. Demonstrando a incoerência da sua linha editorial, supostamente baseada em um jornalismo "democrático e interativo", a Time concedeu a Assange o título de "pessoa (não grata) do ano". Na web, em sentido contrário, os leitores do semanário depositaram mais de 380 mil votos para o fundador do site de denúncias WikiLeaks, elegendo-o como o nome de maior destaque neste primeiro decênio do século 21.
Comércio lucrativo das mídias digitais
Mark Zuckerberg é norte-americano, tem 26 anos, graduou-se em programação de computadores em Harvard e tem uma carreira promissora pela frente. Ficou conhecido por fundar a maior rede social do mundo, com 500 milhões de usuários. No entanto, carrega nas costas o peso de pelo menos duas ações judiciais que colocam em xeque todo o brilhantismo a ele concedido nestes seis anos de existência do Facebook. O australiano Julian Assange tem 39 anos e é um aficionado por programação de computadores desde criança. Estudou matemática e física, passando por diversas escolas e universidades do seu país de origem, mas em sua formação prevalece uma cultura autodidata.
Assange atende pela alcunha de hacker, termo ainda pouco esclarecido no Brasil, usado para designar ativistas da internet com capacitação técnica em burlar códigos criptografados de sistemas de informação computadorizada. No entanto, esta atividade é realizada sem danificar máquinas ou alterar dados contidos nos computadores – conduzida assim, no mais das vezes, para confrontar invasores maldosos. Trata-se, portanto, de uma ação preventiva, comumente confundida com a obra dos chamados crackers, os quais quebram sistemas de segurança com o objetivo oposto, ou seja, cometer atos delituosos.
Conforme os noticiários de todo o mundo têm publicado, o criador do WikiLeaks fez muitos inimigos ao longo de sua trajetória. No entanto, manteve-se firme no ideal de utilizar a internet como espaço de denúncia dos crimes cometidos pelos governos de turno. Abriu espaço para que pessoas comuns pudessem divulgar vídeos, imagens e textos na web, atestando contra os mais variados casos de abuso do poder. Em função disso, Assange sofre uma campanha de difamação, promovida sobretudo pelo governo norte-americano, delatado em cerca de 250 mil documentos diplomáticos.
Na contramão desta guerrilha cibernética, estão as redes sociais, ambientes destinados na maior parte das vezes à simples troca de conteúdos e ampliação de circuitos para contatos e negócios. Diante disso, Zuckerberg aparece como a versão idealizada do empreendedor bem-sucedido da sociedade da informação. É reverenciado por desenvolver um sistema capaz de aproximar pessoas de todo o mundo, diminuindo não só as distâncias geográficas, mas abrindo as brechas necessárias para colocar em prática novos instrumentos e recursos tecnológicos, fomentando o lucrativo comércio das mídias digitais.
Protagonismo dos visionários
Neste cenário de absoluto desprezo pela ação militante da cibercultura, Assange é visto como excêntrico e inimigo da democracia burguesa. Descrito como altamente perigoso, o hacker coloca em prática os preceitos básicos do verdadeiro jornalismo. Nesse ínterim, acaba sendo acusado de "crimes sexuais" para ser desmoralizado e, após pagar a fiança, é libertado de seu cativeiro político proclamando que irá acelerar a divulgação de documentos secretos, os quais não deixaram de ser publicados em função de sua ausência.
Embora esteja respondendo judicialmente a uma série de acusações, Zuckerberg em momento algum é colocado no banco dos réus pela mídia capitalista, como feito com Assange. Mas deveria, pois os gêmeos Tyler e Cameron Winklevoss acusam-no de roubar a ideia de criação do Facebook, colocando em discussão a problemática dos direitos autorais. Em um primeiro processo, movido em 2008, a dupla, que se diz injustiçada por Zuckerberg, recebeu US$ 65 milhões de indenização. Com a primeira vitória, os advogados alegam que a quantia não é suficiente e ingressaram outra vez na Justiça no início de dezembro passado.
Mas os problemas do garoto-prodígio de Harvard não param por aí. Ele mantém ainda como desafeto o brasileiro Eduardo Saverin, que participou da criação do site de relacionamentos como diretor financeiro e acabou processado por cobrar sua fatia do bolo, sob a alegação de "estar interferindo nos negócios da empresa". Saverin foi o responsável pelo investimento inicial de US$ 1 mil, dando o pontapé inicial na operacionalização do Facebook. Ele era amigo íntimo de Zuckerberg, mas quando o interesse econômico se sobrepôs, o afeto acabou sendo posto de lado, restando também ao brasileiro processar seu antigo sócio, o que lhe rendeu 5% de ganhos na empresa e uma quantia suficiente para viver como milionário. Tudo isso é retratado no filme A Rede Social, dirigido por David Fincher, que conta a história de criação do site de relacionamentos mais popular do mundo.
Resta ao público e ao júri popular que nomeou Assange, e não Zuckerberg, como personalidade do ano, questionar a técnica nociva com que a informação é transmitida pelo país de origem e reproduzida pelos demais grupos de mídia de plantão, a contragosto da opinião reinante na internet. Não há mais espaço para a falta de posicionamento crítico sobre as novas práticas de militância e ativismo político, que abundam hoje em dia nos meios virtuais. Contrapor-se à lógica valorativa da sociedade da informação, a qual premia as redes sociais e condena os movimentos de denúncia em ambiente colaborativo, é atualizar as táticas de ciberguerrilha e promover a defesa do interesse público em detrimento do nefasto consenso do silêncio proposto pelo mercado. O discurso retórico do potencial revolucionário da internet resume-se à propalada liberdade, a qual, na prática, evoca a mera participação, ou ainda, o consumo, afastando cada vez mais o protagonismo dos verdadeiros visionários.
Originalmente publicado em: Observatório da Imprensa
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